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Quando a "Loucura" Tem Nome de Mãe

O dilema invisível
Psicólogos que atuam na rede pública vivem diariamente o dilema de se posicionar na fronteira entre a razão e o coração. De um lado, temos normas, limites técnicos, sigilo, institucionalidade. De outro, temos a urgência da vida, os afetos que transbordam, a dor que se impõe sem avisar.
Como impedir uma tragédia? Como garantir que alguém vá sobreviver até a próxima consulta? E, ao mesmo tempo, como manter-se ético, centrado, sem invadir, sem prometer o que não se pode cumprir?
A sociedade ainda espera do psicólogo uma espécie de função mágica: a de “resolver” os sofrimentos com palavras ou receitas. Mas o nosso ofício é outro. É o de sustentar presenças. Oferecer escuta. Ampliar caminhos onde antes só havia muros. Nem sempre conseguimos evitar o pior — e isso fere profundamente. Mas muitas vezes, somos aquele fio que segura alguém por mais um dia.
Não somos salvadores, mas somos pontes
Essa história não tem desfecho simples. Como a maioria dos casos que chegam até nós, ela continua acontecendo, entre retornos, ausências e tentativas. Mas fica a marca de um encontro em que a escuta foi mais potente que qualquer formulário. Em que estar junto, naquele exato momento, fez diferença.
A atuação psicológica em uma instituição da justiça é feita no entre — entre o jurídico e o humano, entre o caos e o possível, entre o querer e o poder. E é nesse entre que seguimos, diariamente, caminhando com quem muitas vezes já perdeu tudo, menos a esperança de ser ouvido.
QUANDO A "LOUCURA" TEM NOME DE MÃE
Era uma quinta-feira abafada quando a jovem apareceu na recepção, acompanhada de dois filhos pequenos. Tinha 28 anos, mas os olhos denunciavam uma infância prolongada à força. Falava baixo, com dificuldade, como quem tenta manter as palavras sob controle para não acordar algo maior dentro de si.
Pediu ajuda para proteger os filhos da própria mãe — uma senhora com histórico de esquizofrenia paranoide, que alternava momentos de lucidez e afeto com surtos intensos de agressividade. A jovem narrava episódios de gritos, insultos e objetos quebrados, muitos deles na presença das crianças. Moravam todos sob o mesmo teto, num imóvel herdado, e ela não tinha para onde ir.
“Eu amo minha mãe”, disse com os olhos marejados. “Ela me criou sozinha, não abandonou nem quando foi internada. Mas agora… agora eu tenho medo dela. Medo real. E culpa por ter esse medo.”
Buscava orientação jurídica para conseguir medida protetiva. Queria, ao mesmo tempo, afastar a mãe e garantir que ela recebesse cuidado. Tinha vergonha de denunciar, mas sentia que se não agisse, algo pior poderia acontecer.
O atendimento foi longo, entrecortado por olhares para os filhos. Era visível o esforço da mãe em manter a normalidade diante deles. No entanto, em dado momento, ela confessou algo que não estava nos documentos:
"Às vezes eu penso que vou acabar igual a ela. Às vezes, ouço umas coisas também. E me pergunto se já começou."
Esse foi o ponto de virada. O pedido jurídico estava ali, claro e legítimo. Mas o sofrimento psíquico transgeracional emergia como uma espiral silenciosa, pedindo escuta. O medo de “herdar a loucura” era tão angustiante quanto o medo da própria mãe.
Naquele dia, o atendimento psicológico não resolveu tudo. Mas abriu espaço para o que quase nunca tem nome: o luto de uma filha que perde, aos poucos, a mãe que ainda está viva. E o medo de ser tragada pela mesma sombra.
Articulamos o caso com o setor jurídico, com o CAPS de referência, e incluímos o CREAS na rede de proteção. Também iniciamos o acompanhamento psicológico ali mesmo, na Defensoria, com foco no acolhimento da angústia e fortalecimento da rede materna.
Reflexões: entre o amor e o medo – quando a doença mental ocupa a casa
A violência intrafamiliar é, muitas vezes, silenciosa. Ela se manifesta nos detalhes: no grito que se repete, na tensão que paira no ar, na criança que se esconde atrás da porta. E quando a pessoa que agride está em sofrimento psíquico intenso, o dilema se torna ainda mais complexo — especialmente para quem ama e quer cuidar, mas também precisa sobreviver.
O caso dessa jovem mãe que buscou a justiça para se proteger da própria mãe — diagnosticada com esquizofrenia — escancara um ponto cego das políticas públicas: como proteger sem criminalizar, e como cuidar sem se anular?
As famílias que vivem com transtornos mentais graves no seu núcleo muitas vezes oscilam entre dois extremos: a idealização da figura do cuidador, que tudo suporta em nome do amor; e o abandono por parte do Estado, que delega a esses mesmos cuidadores toda a responsabilidade pelo cuidado, segurança e estabilidade da pessoa em sofrimento.
Nesse contexto, os limites entre cuidado e violência se embaralham. Há filhos que amam os pais e têm medo deles. Há mães que, em surto, ameaçam, gritam, batem — mas que, fora dele, choram de arrependimento e afeto. Há filhos que herdam não apenas os traços genéticos, mas também a culpa, a exaustão, o estigma.
O psicólogo entre o afeto e a denúncia
Do ponto de vista psicológico, esses atendimentos exigem escuta qualificada e sensível. É preciso ir além da superfície jurídica e perguntar:
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Qual é o lugar da doença nessa família?
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O que se repete de geração em geração?
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Onde termina o amor e começa a anulação de si?
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O que significa, para essa filha, ter medo da própria mãe — e também dela mesma?
Ao mesmo tempo, é preciso respeitar os limites legais e éticos. O psicólogo não substitui o juiz, o assistente social ou o psiquiatra. Mas pode ser aquele que sustenta a ambivalência, que acolhe o conflito sem reduzi-lo a categorias fixas: vítima ou agressor, cuidador ou negligente.
Medidas protetivas não são abandono
Quando alguém pede afastamento de um parente com transtorno mental, isso não significa falta de amor. Significa, muitas vezes, o último gesto de cuidado possível. Proteger os filhos, proteger a si, e proteger até a própria pessoa em surto. A medida protetiva, nesse contexto, precisa ser acompanhada de estratégias de cuidado em saúde mental — e não apenas de sanções ou exclusões.
Cuidar sem se apagar
Essa história é uma entre tantas. Mas ela nos lembra que o sofrimento psíquico não cabe nas paredes de um laudo, e que a violência pode nascer até do desamparo, não da maldade. Famílias que cuidam de alguém em sofrimento mental precisam, elas mesmas, ser cuidadas. E, acima de tudo, precisam ser ouvidas — sem julgamento, sem romantização, e com o reconhecimento de que, às vezes, amar também é saber recuar.
“Levai as cargas uns dos outros e, assim, cumprireis a lei de Cristo. Porque, se alguém julga ser alguma coisa, não sendo nada, a si mesmo se engana. Mas prove cada um a sua obra, e terá motivo de glória somente em si mesmo, e não em outro. Porque cada qual levará o seu próprio fardo.”
(Gálatas 6:2-5)
26 de janeiro de 2025.
LUAN GAMA WANDERLEY LEITE
Psicólogo/Neuropsicólogo (CRP-15/3328)
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