"UM GRITO DE ALERTA E SOCORRO"
O SOFRIMENTO INVISÍVEL DOS FAMILIARES DE
PESSOAS COM TRANSTORNOS MENTAIS GRAVES

O cenário de desamparo vivido por famílias de pessoas com transtornos mentais graves é uma realidade dolorosa que precisa de maior atenção por parte do Estado e da sociedade. Como psicólogo testemunhei ao longo do ano de 2024 histórias que expõem a precariedade dos serviços de saúde mental e a ausência de suporte adequado às famílias, principalmente as de baixa renda, que enfrentam desafios quase insuportáveis.
Entre os inúmeros casos atendidos, um particularmente marcante foi o de uma senhora que há dias não conseguia dormir. Ela estava em desespero porque o hospital psiquiátrico onde sua filha, diagnosticada com esquizofrenia severa e surtos de violência, estava internada, havia informado sobre a alta iminente da paciente. Essa mãe relatou que, ao ter sua filha em casa, vivia em constante estado de alerta, pois já havia passado por situações extremas, como a filha acordar no meio da madrugada portando uma faca com a intenção de matá-la. Este relato, embora impactante, está longe de ser um caso isolado.
A Ineficiência dos Serviços de Saúde Mental
A precariedade dos serviços de saúde mental no Brasil, é um reflexo da insuficiência de políticas públicas voltadas para essa área. O sistema de saúde mental, que deveria garantir um atendimento humanizado e contínuo, enfrenta uma série de problemas estruturais, como a falta de leitos psiquiátricos, profissionais capacitados e programas de acompanhamento para os pacientes e seus familiares.
A desinstitucionalização dos hospitais psiquiátricos, embora necessária para evitar internações desumanas e abusivas, deixou uma lacuna que não foi adequadamente preenchida por serviços comunitários, como os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS). Essas unidades, em muitos casos, estão sobrecarregadas e carecem de recursos suficientes para atender à demanda. Com isso, famílias como a da senhora mencionada são forçadas a assumir uma responsabilidade que não têm condições de cumprir sozinhas.
O Sofrimento Invisível das Famílias
Para os familiares de pessoas com transtornos mentais graves, a convivência diária é marcada por um sofrimento contínuo e, muitas vezes, invisível. Sem suporte adequado, essas famílias vivem em constante estado de tensão, tentando equilibrar o cuidado com o ente querido e as próprias necessidades básicas. O medo é uma presença constante, especialmente em casos onde há histórico de surtos de agressividade, como o relatado acima.
Além do desgaste emocional, há também o impacto financeiro. Muitas dessas famílias vivem em condições de pobreza e não têm acesso a medicamentos caros, terapias adequadas ou suporte psicológico para si mesmas. Não existe condições mínimas de cuidados, deixando essas pessoas em uma posição de extrema vulnerabilidade.
A Urgência de Reformas nas Políticas Públicas
É imprescindível que as políticas públicas sejam reformuladas para garantir que essas famílias recebam o suporte necessário. Isso inclui:
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Expansão e fortalecimento dos CAPS: É essencial que esses centros estejam devidamente equipados e contem com equipes multidisciplinares capacitadas para atender a uma ampla gama de necessidades, tanto dos pacientes quanto dos familiares.
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Apoio às famílias: Programas de apoio psicológico, orientação e acompanhamento para familiares precisam ser implementados com urgência. As famílias não podem ser tratadas como "ferramentas de cuidado", mas como indivíduos que também necessitam de atenção e suporte.
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Aumento de leitos psiquiátricos e atendimento especializado: Enquanto os serviços comunitários não são plenamente fortalecidos, é necessário garantir que os hospitais psiquiátricos tenham condições dignas para atender pacientes em crise, evitando altas precipitadas que colocam em risco a vida de todos os envolvidos.
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Campanhas de conscientização: É necessário reduzir o estigma associado aos transtornos mentais para que a sociedade compreenda a gravidade da situação e cobre medidas efetivas do poder público.
A internação psiquiátrica humanizada é um componente essencial das políticas públicas para casos graves em que as famílias não possuem recursos suficientes para oferecer o cuidado necessário em casa. Alguns países e regiões têm implementado modelos eficazes que conseguem equilibrar a internação com o respeito aos direitos humanos e a reabilitação dos pacientes. Aqui estão alguns exemplos e práticas que podem ser adaptadas a outros contextos, incluindo o Brasil:
1. Itália (Modelo de Trieste)
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Política: A cidade de Trieste é amplamente reconhecida pelo modelo de internação humanizada, focado no fechamento de manicômios e na criação de serviços comunitários. No entanto, em casos graves que necessitam de internação, as unidades são pequenas e integradas à comunidade.
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Práticas Humanizadas:
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Ambiente Aberto: Não há contenções físicas nem isolamento; os pacientes podem sair e interagir com seus familiares.
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Equipe Multidisciplinar: Médicos, psicólogos, assistentes sociais e terapeutas trabalham juntos para criar um plano de cuidado individualizado.
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Envolvimento da Família: As famílias participam do processo de tratamento e recebem suporte psicológico e educacional.
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Resultados: Uma redução significativa no estigma e na reincidência hospitalar, além de maior integração social dos pacientes.
2. Suécia (Hospitalização Curta e Programada)
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Política: A Suécia adota um modelo de internação de curto prazo para casos graves, combinada com serviços comunitários robustos. As hospitalizações são realizadas apenas quando absolutamente necessárias e em condições dignas.
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Práticas Humanizadas:
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Unidades Pequenas e Confortáveis: As unidades hospitalares são projetadas para se parecerem mais com casas do que com hospitais, proporcionando um ambiente acolhedor.
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Foco na Reabilitação: Durante a internação, os pacientes participam de atividades terapêuticas e educativas para preparar sua reintegração na sociedade.
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Apoio às Famílias: Programas de suporte financeiro e psicológico para os familiares são oferecidos, reconhecendo o impacto emocional e econômico do cuidado.
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Resultados: Maior adesão ao tratamento, menor resistência dos pacientes à hospitalização e redução de episódios graves.
3. Alemanha (Modelo Integrado de Psiquiatria Comunitária e Internação)
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Política: A Alemanha combina internação em hospitais gerais com serviços comunitários altamente acessíveis, evitando grandes hospitais psiquiátricos isolados.
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Práticas Humanizadas:
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Hospitais Psiquiátricos em Hospitais Gerais: As alas psiquiátricas são integradas a hospitais gerais, reduzindo o isolamento e o estigma.
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Planos de Alta Progressivos: Antes de receberem alta, os pacientes passam por um período de transição em que retornam gradualmente às suas casas com suporte médico e social.
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Serviços de Internação Parcial: Para evitar a ruptura total da vida cotidiana, muitos pacientes participam de programas de internação diurna, retornando às suas casas à noite.
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Resultados: Menor tempo de internação e maior suporte para reintegração.
4. França (Hospitais Psiquiátricos Humanizados)
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Política: Na França, hospitais psiquiátricos seguem normas rígidas de humanização e integração social. Em casos graves, a internação é vista como um momento de transição para serviços comunitários.
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Práticas Humanizadas:
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Unidades Humanizadas: O foco é criar espaços que não lembram instituições, com quartos privados e áreas comuns acolhedoras.
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Atividades Terapêuticas: Os pacientes participam de terapias artísticas, ocupacionais e de grupo.
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Acompanhamento Pós-Alta: Equipes visitam os pacientes em suas casas para garantir a continuidade do tratamento e apoiar as famílias.
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Resultados: Melhoria significativa na qualidade de vida dos pacientes e das famílias.
5. Canadá (Apoio em Internações de Longo Prazo para Casos Graves)
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Política: O Canadá oferece unidades específicas para casos graves que demandam internação prolongada. Essas unidades são voltadas para reabilitação e transição para serviços comunitários.
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Práticas Humanizadas:
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Residências Terapêuticas: Para casos em que a hospitalização é necessária por longos períodos, são oferecidas residências que combinam cuidados médicos e um ambiente acolhedor.
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Treinamento para a Família: As famílias são capacitadas para lidar com os desafios do cuidado ao paciente após a alta.
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Foco no Paciente: A autonomia do paciente é respeitada, e ele participa ativamente do planejamento de seu tratamento.
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Resultados: Redução do isolamento social e maior satisfação dos pacientes e familiares.
Lições para o Brasil
Esses exemplos mostram que, mesmo em casos graves que exigem internação, é possível adotar práticas humanizadas que respeitem os direitos dos pacientes e ofereçam suporte adequado às famílias. Para o Brasil, iniciativas como:
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A criação de residências terapêuticas de alta complexidade;
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O fortalecimento de equipes multidisciplinares nos hospitais psiquiátricos;
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O aumento do suporte financeiro e psicológico para as famílias;
são caminhos possíveis para transformar o cuidado em saúde mental em um modelo mais digno e eficiente.
Conclusão
O sofrimento dos familiares de pessoas com transtornos mentais graves é um reflexo de um sistema falho que não consegue atender às demandas de uma população extremamente vulnerável. Em meu trabalho, encontro diariamente histórias de dor e desespero que poderiam ser evitadas com políticas públicas mais eficazes e uma estrutura de saúde mental verdadeiramente comprometida com o bem-estar da população.
Enquanto isso, essas famílias seguem lutando sozinhas, como a senhora que permanece sem dormir, temendo pela própria vida enquanto tenta cuidar de sua filha. Essa realidade não pode continuar invisível. É hora de transformar o sofrimento dessas famílias em um chamado à ação para que o Estado assuma sua responsabilidade e ofereça o suporte que elas tanto necessitam.
“Vinde a mim, todos os que estais cansados e sobrecarregados, e eu vos aliviarei. Tomai sobre vós o meu jugo, e aprendei de mim, porque sou manso e humilde de coração; e encontrareis descanso para as vossas almas. Porque o meu jugo é suave, e o meu fardo é leve.”
(Mateus 11:28-30)
27 de outubro de 2024.
LUAN GAMA WANDERLEY LEITE
Psicólogo/Neuropsicólogo (CRP-15/3328)