SILÊNCIO NA CASA AO LADO
O OUTRO LADO DO TRANSTORNO MENTAL

Recebi uma mulher de olhar cansado e mãos inquietas. Ela entrou com passos contidos, como se pedir ajuda fosse, ao mesmo tempo, um grito e um pedido de desculpas. "É sobre o meu irmão", disse. E, naquele instante, começava mais uma história que já se arrastava há anos, dentro de uma casa que ninguém mais queria entrar.
Cristiano — nome fictício para proteger quem já se expôs tanto — vive hoje na antiga casa da mãe, falecida há alguns anos. A residência, antes cheia de vozes e passos de cinco irmãos, tornou-se um ponto de silêncio e tensão. Foi cedida por necessidade: a convivência com Cristiano se tornara impossível. Entre surtos, crises e agressões, ele havia perdido todos os espaços. Restou a casa da mãe. E, com ela, a irmã.
Ele caminhava pelas ruas do bairro como um fantasma familiar. Alto, expressão ausente, às vezes murmurando para si mesmo — outras vezes, gritando contra um inimigo invisível. Para os vizinhos, era apenas "o doido do quarteirão". Para a irmã, era o que restava de um menino doce, que um dia teve sonhos antes que a mente começasse a falhar.
Ela, única que ainda permanece por perto, tornou-se sua curadora legal. Mora na mesma rua, mas mantém distância. Instalou câmeras de vigilância dentro da casa para acompanhar os movimentos do irmão sem precisar entrar. Vai até lá todos os dias — de preferência quando ele está fora — para lavar suas roupas, reabastecer a geladeira, organizar o que o caos deixou pelo caminho. Faz isso em silêncio, com passos leves, como quem pisa sobre vidro.
Naquele dia em que me procurou, seu rosto trazia uma urgência diferente. Cristiano havia surtado novamente. Se envolveu em mais uma briga com vizinhos e foi esfaqueado. A SAMU o socorreu e o levou ao hospital. Ela contou tudo com voz firme, como quem aprendeu a endurecer, mas quando falou das facadas... seus olhos finalmente cederam.
Fui até a casa dele. Um atendimento domiciliar, na tentativa de, ao menos, convencê-lo da importância de dar continuidade ao tratamento. Falei sobre a necessidade de manter os medicamentos, de procurar um médico, de preservar sua segurança e a dos outros. Cristiano me ouvia entre frases desconexas, alternando momentos de lucidez e delírio. Recusava tudo: o remédio, a ajuda, a realidade.
Mas, em determinado momento, surpreendentemente, disse que estava disposto a se internar.
E então eu me perguntei: aonde?
Em Alagoas, vivemos um paradoxo cruel. Famílias que buscam ajuda para parentes com transtornos mentais graves se deparam com uma barreira quase intransponível. Se o paciente for usuário de drogas, é possível conseguir internação em clínicas de reabilitação, muitas das quais contam com alas específicas para pessoas com transtornos mentais. E o mais estarrecedor: essas internações, por vezes, são financiadas com recursos públicos, via Estado ou Município.
Mas Cristiano não usa drogas.
E por isso, paradoxalmente, tem menos chances de conseguir uma vaga.
É como se, para ser tratado, ele precisasse antes ser rotulado como dependente químico.
Ainda assim, tentei.
Entrei em contato com a coordenação de saúde mental do Estado e do Município. Conversei pessoalmente com uma equipe do CAPS-AD. Expliquei o caso, insisti, busquei caminhos.
A resposta veio em forma de pergunta:
“Ele usa drogas?”
Foi como um golpe seco.
Não fazia sentido. Não havia lógica, nem bom senso, muito menos respaldo legal para aquele critério. Nenhuma regulamentação prevê que o acesso à internação em saúde mental deva depender do uso de substâncias. E, mesmo assim, era esse o filtro que determinava quem podia ou não ser acolhido.
Os próprios profissionais com quem dialoguei demonstraram desconforto. Alguns, com tristeza nos olhos, disseram se sentir de mãos atadas. Outros verbalizaram a mesma indignação e impotência que me consumia naquele momento.
Cristiano queria ajuda. E não havia um sistema pronto para recebê-lo — porque sua dor não se encaixava na porta certa.
Cristiano estava — e ainda está — correndo risco de vida.
Assim como sua irmã, constantemente ameaçada por ele durante os surtos psicóticos. Mas nem isso é suficiente para garantir uma internação de três meses, onde — no mínimo — ele poderia retomar o uso regular das medicações, estabilizar seu quadro e reduzir os riscos à própria integridade e à dos outros.
A única forma de acessar esse tipo de acolhimento, financiado pelo Estado ou pelo Município, seria se ele fosse dependente químico.
Sim, é isso mesmo: para ter direito à vaga, precisaria antes ser classificado como alguém que usa drogas. Como se o sofrimento psíquico por si só não fosse grave o bastante. Como se ameaçar a si mesmo ou a terceiros não configurasse urgência. Como se a vida dele, da irmã, e de tantas outras famílias, só valesse ajuda se viesse com o rótulo certo.
Esse é o tipo de violência silenciosa que também adoece quem cuida.
Não era a primeira vez. Ele já havia agredido vizinhos com palavras, objetos, ameaças. Já havia empurrado a própria irmã num ataque de raiva. Ela me contou de um episódio em que ele a cercou na cozinha, furioso, e ela precisou se trancar no banheiro até ele se acalmar. Mas sempre voltava. Sempre cuidava. Sempre limpava o rastro dos dias difíceis.
Na conversa, ela desabou. Disse que, se pudesse, abriria mão da curatela. “É um fardo pesado demais pra uma pessoa só”, murmurou. Mas então veio algo que nenhum profissional escuta sem carregar junto: entre lágrimas, após mais um episódio de agressão, ela me disse, com voz trêmula:
“Doutor, eu preciso colocar pra fora o que passou pela minha cabeça... Eu não quero o mal do meu irmão, nunca quis. Meu sonho era que ele tivesse um lugar onde tomasse os remédios, convivesse com outras pessoas. Mas... eu sei que esse lugar não existe. E, pedindo perdão a Deus, eu pensei... se ele tivesse morrido dessa vez... seria uma dor... mas também um alívio.”
Silêncio. E nesse silêncio, estava tudo: o amor que sobrevive, a exaustão que destrói, a culpa que sangra.
O caso de Cristiano não é único. É o retrato do abandono silencioso da saúde mental em nosso país. De famílias que tentam, resistem, desmoronam.
De profissionais que atuam nas bordas da urgência, entre o cuidado possível e os limites do sistema.
Não é fácil escrever sobre isso. Mas necessário. Porque talvez, ao dar nome ao que não se diz, a gente consiga, enfim, abrir caminhos para que algo mude.
"Porventura não é este o jejum que escolhi: que soltes as ligaduras da impiedade, que desfaças as ataduras da servidão, que deixes livres os oprimidos, e despedaces todo o jugo? Porventura não é também que repartas o teu pão com o faminto, e recolhas em casa os pobres desterrados? Quando vires o nu, o cubras, e não te escondas daquele que é da tua carne?"
Isaías 58:6-7
LUAN GAMA WANDERLEY LEITE
Psicólogo/Neuropsicólogo (CRP-15/3328)