Quando um pai pede socorro
entre o amor, o desespero e os limites

ÚLTIMO ATENDIMENTO ANTES DO RECESSO
Ele entrou na sala como quem carrega o mundo nas costas — ou talvez o que restava dele. Um senhor de 73 anos, voz rouca, mãos trêmulas, e um envelope suado entre os dedos. Sua filha, de 36 anos, havia desaparecido naquela semana. Deixara para trás apenas uma carta curta, escrita à mão, onde dizia estar cansada dos altos e baixos da esquizofrenia e da vergonha de “ser um peso para a família”.
A dor daquele pai era quase física. Queria encontrá-la, protegê-la, cuidar dela como vinha fazendo há anos. Mas, diante do desaparecimento e das barreiras legais, viu-se impotente. A possibilidade de uma ação de curatela surgia como um caminho: com ela, poderia representar a filha legalmente, acessar informações e agilizar buscas. Mas a burocracia não perdoa o sofrimento — exigia um laudo médico atualizado, atestando a incapacidade dela. E ele não sabia nem por onde começar.
Foi nesse ponto que a dor transbordou em palavras desesperadas:
"Ou o senhor me ajuda, ou eu não aguento mais. Quem vai resolver essa dor sou eu mesmo."
Essa frase ainda ecoa. Porque ela traduz o esgotamento não só de um pai, mas de tantas famílias que cuidam, resistem e, por vezes, adoecem juntas.
Reflexões éticas e sociais
Casos como esse nos obrigam a olhar com mais atenção para os limites da rede de apoio às pessoas com transtornos mentais graves e suas famílias. Quem cuida de quem cuida?
Famílias são frequentemente empurradas para o centro do cuidado, sem orientação, sem suporte emocional e, muitas vezes, sem amparo jurídico. O processo de curatela, que deveria proteger, muitas vezes se torna um labirinto. A exigência de laudos, exames e pareceres desconsidera o contexto real de quem está em sofrimento, especialmente nos casos de urgência, como desaparecimentos.
A curatela, do ponto de vista legal, é uma ferramenta importante — mas deve ser usada com critério, respeitando os direitos da pessoa com transtorno mental, sem cair na armadilha da tutela absoluta. A Reforma Psiquiátrica e a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência nos lembram da importância de garantir autonomia sempre que possível, e proteção quando necessário, em equilíbrio.
Do ponto de vista ético, atender esse pai é também reconhecer que o desespero é legítimo. Não basta remeter a outros órgãos. É preciso escutar, acolher e agir em rede. Profissionais do direito, da saúde e da assistência social precisam estar preparados para essas escutas-limite, onde a dor ultrapassa a linguagem formal dos processos.
Cuidar é uma travessia coletiva
Este caso não é isolado. É um retrato de tantas famílias que, silenciosamente, sustentam vínculos com filhos, irmãos, companheiros em sofrimento psíquico. Muitas vezes, sem sequer saber o nome do que enfrentam. E, quando buscam ajuda, encontram portas giratórias, formulários complexos e respostas frias.
Precisamos fortalecer os laços entre as políticas públicas — saúde, assistência e justiça — para que cuidar não seja uma tarefa solitária. O sofrimento mental não cabe em prazos processuais, e o amor não substitui políticas públicas.
Enquanto isso, seguimos escutando. Porque às vezes, o mais urgente não é resolver tudo de uma vez. É simplesmente garantir que a pessoa não esteja sozinha diante do abismo.
“Perto está o Senhor dos que têm o coração quebrantado, e salva os de espírito abatido. Muitas são as aflições do justo, mas o Senhor o livra de todas.”
(Salmos 34:18-19)
23 de marçco de 2025.
LUAN GAMA WANDERLEY LEITE
Psicólogo/Neuropsicólogo (CRP-15/3328)