QUANDO O DIREITO E A SAÚDE SE ENCONTRAM NO CAOS
o ego é o nosso inimigo

Era por volta de meio-dia quando M, 38 anos, foi encaminhada para o atendimento psicológico.
A tensão estampada no rosto, os olhos inquietos. Suas mãos não paravam – ora ajustavam o cabelo, ora apertavam a bolsa contra o peito.
Sentou-se no sofá com sinais claros de agitação psicomotora, movimentos bruscos, como se cada gesto denunciasse uma batalha interna invisível.
— “Doutor, eles tiraram o meu filho de mim. Eu quero justiça.”
Essa foi sua primeira frase, direta, sem rodeios. Mas os relatos que estavam por vim estavam longe de ser linear.
Os relatos de M vinham em espiral, começavam em um ponto, giravam, tocavam assuntos inesperados e voltavam ao centro.
A disputa judicial pela guarda do filho, a sensação de perseguição, os laudos médicos que não faziam sentido, os diagnósticos que mudavam conforme o profissional.
Ela falava rápido, como se tentasse organizar os próprios pensamentos à medida que os verbalizava.
Sua história era marcada por contradições externas e internas:
Um atestado psicológico afirmava “sanidade mental” enquanto vários laudos médicos indicavam uma série de transtornos mentais, incluindo bipolaridade e esquizofrenia.
Um juiz negava a guarda alegando instabilidade emocional, enquanto ela insistia que o filho estava em risco na casa do pai.
Ao longo da sessão, fui preenchendo lacunas.
M relatou um acidente em 2013 que marcou o início de suas crises. Antes disso, já havia vivido abandono, negligência, rejeição familiar.
Criada pela avó, conviveu com uma mãe emocionalmente ausente e um padrasto que invadia sua privacidade.
Na adolescência, sofreu bullying, foi chamada de “bastarda”, cresceu sem apoio. A busca pelo pai biológico nunca deu em nada.
A dor de perder o filho somava-se ao peso de uma vida inteira de desencontros.
— “O senhor acredita em mim?” — perguntou, a voz embargada.
A LINHA TÊNUE ENTRE A REALIDADE E O DELÍRIO
O relato começou a tomar um tom mais alarmante.
Entre frases desconexas, surgiam falas sobre perseguição, câmeras escondidas em sua casa, escutas telefônicas.
Seu tom oscilava entre a lucidez e a desconfiança paranóide. O sistema de saúde, segundo ela, a boicotava, já o Judiciário, por sua vez, trabalhava contra ela.
A cada pergunta minha, M hesitava. Seus olhos analisavam meu rosto, como se buscasse sinais de traição.
— “Eu não sei se posso confiar no senhor.”
Essa frase me acompanharia pelo restante do atendimento.
Entre os papéis que trazia consigo, havia laudos médicos que, à primeira vista, eram conflitantes.
Alguns indicavam transtornos psiquiátricos graves, outros afirmavam que sua saúde mental estava preservada. Pedi que ela explicasse a origem dos documentos.
— “Eles querem me confundir. Um médico diz que eu sou doente. Outro diz que não. No final, ninguém me escuta.”
E, de fato, esse era o ponto central.
O MOMENTO DE RUPTURA
Após mais de uma hora de atendimento, intervenções, escuta qualificada, apresentei duas possibilidades.
A primeira oficializar o Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) em que M estava sendo acompanhada, com uma solicitação formal para revisão do tratamento, aumento na frequência dos atendimentos e ajustes na medicação.
Ela não acreditava que algo iria mudar, na verdade o seu foco não era o tratamento da sua saúde mental e nem poderia ser, M estava tomada por delírios intensos e alucinações.
Sem conseguir nem ao menos minimizar o seu quadro, tive que recorrer a segunda opção, aquela que nenhum psicólogo ou ser humano se sente confortável, internação temporária para estabilização do quadro.
Sem familiares com quem eu pudesse entrar em contato, expliquei que seria necessário acionar o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU).
Não poderia negligenciar o quadro severo de um surto psicótico e simplesmente deixá-la sair por aí, colocando em risco a sua vida e a de terceiros.
A prova clara que era necessário essa intervenção veio rápido:
Ela endureceu o olhar e gritou:
— “Doutor, eu não sou louca.”
Tentei explicar que internação não era castigo, nem sentença. Mas, para M, a palavra carregava um histórico de dor.
Internações anteriores haviam deixado cicatrizes – físicas e emocionais.
A ideia de voltar a um hospital psiquiátrico acendeu o pavio da revolta.
A ESCALADA DO SURTO
A partir daí, tudo aconteceu ainda mais rápido.
Os gritos começaram com xingamentos dirigidos à instituição, ao sistema e a mim.
De forma agressiva M. lançou sua bolsa, pastas e documentos em minha direção.
Abruptamente saiu da sala de atendimento psicológico.
Seus gritos e os passos pesados ecoaram pelos corredores, dava para perceber no olhar de outros assistidos e servidores o medo de M. e ao mesmo tempo a preocupação para comigo.
A equipe de segurança agiu de forma rápida para preservar a minha integridade e de outros, inclusive de crianças que estavam presentes.
Mas a resposta rápida e padrão da equipe de seguranças treinados, não era apropriada para situações de emergência psiquiátrica.
Um dos agentes se colocou entre mim e M., claramente na intenção de me proteger e começou a abordá-la verbalmente.
Tive literalmente um minuto para orientá-los sobre a conduta que deveriam adotar a partir daquele momento, disse que iria conduzir o caso do começo ao fim, solicitei que não tentassem qualquer tipo de intervenção e me coloquei novamente diante de M.,
Mesmo em meio a gritos, xingamentos e comportamentos agressivos, com um tom firme, solicitei que ela voltasse para minha sala, ela assim fez.
Duas Defensoras Públicas ao ouvir os gritos, prontamente se dirigiram até a porta da minha sala, que ainda estava entre aberta, me perguntaram se eu estava precisando de ajuda, respondi:
"Não se preocupem, vai ficar tudo bem." Bom, pelo menos foi isso que eu achei que aconteceria...
Fechei a porta da sala, pedir que buscassem água, diminuir a temperatura do ar condicionado e continuei com a postura de escuta ativa até que ela se sentou mais uma vez no sofá.
Orientei os seguranças para que apenas um deles ficasse dentro da sala comigo e a assistida e autorizei a entrada da Assistente Social que teve um papel fundamental para acionar a SAMU e a Polícia Militar enquanto permaneci dando assistência e escutando atentamente a assistida mesmo que os delírios não sessavam.
Minha preocupação era garantir que a contenção fosse feita com respeito, sem violência.
Ninguém encostaria nela sem necessidade, ou muito menos tentariam fazer intervenções sem o preparo adequado.
O PAPEL DO AMBIENTE NO MANEJO DA CRISE
A sala de atendimento psicológico estava preparada. Quando comecei a atuar na Defensoria, minha primeira solicitação foi um sofá confortável.
Tenho certeza de que muitos não entenderam a necessidade, mas a administração atendeu prontamente ao pedido.
Sim, um sofá. Um ambiente climatizado, tranquilo e acolhedor, com água disponível e um segurança treinado para acompanhar de forma discreta.
Esses elementos, muitas vezes subestimados, fazem a diferença no manejo adequado de um surto psicótico até a chegada da equipe médica. Mas, aqui começou o verdadeiro problema: "A espera pela equipe médica."
Infelizmente, a situação ainda estava longe de uma resolução adequada, que seguisse todos os protocolos de emergência psiquiátrica.
A SAMU foi acionada. Ligações foram feitas e refeitas. A espera foi longa e tensa.
A cada minuto, o surto oscilava entre choro e agressividade. A sensação de injustiça consumia M..
Após uma dezena de ligações a polícia militar chegou antes da ambulância. A abordagem dos policiais foi profissional e cuidadosa.
Não havia ali uma criminosa, apenas uma mulher no auge do desespero.
Eu sabia — e qualquer psicólogo sabe ou deveria saber — que aquele surto de agressividade não duraria para sempre.
Sabia que a raiva dela não era dirigida a mim.
Sabia que M. chegaria à exaustão mental e física e, por fim, se acalmaria. (A equipe da SAMU também sabe muito bem disso)
Foi exatamente o que aconteceu.
Ela se acalmou. Começou a pedir desculpas. Mas suas falas delirantes continuavam.
Aqui, faço um alerta a todos os familiares de pessoas em sofrimento psíquico, com quem já tive a oportunidade de conversar: o fato de a situação parecer estabilizada não significa que a emergência psiquiátrica tenha terminado.
Na última ligação para a SAMU, fui questionado se a assistida já estava tranquila. Precisei responder de forma enfática e assertiva:
"Sim, depois de quase três horas, é claro que ela está tranquila. Mas nem eu nem ela sairemos desta Defensoria até que os protocolos sejam cumpridos e a equipe médica a conduza ao hospital psiquiátrico adequado!”
Tenho 15 anos de Psicologia e conheço muito bem os bastidores da saúde mental, assim como a estratégia de esperar até que o paciente se "acalme". Não desta vez—do outro lado da linha, havia alguém experiente.
Tenho total respeito pelos profissionais do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU). Discar 192 é sempre minha última alternativa—tanto que esta foi a única vez em que precisei acioná-lo. No entanto, recorrerei ao SAMU sempre que todas as outras opções estiverem esgotadas.
E deixo aqui outro alerta, desta vez para todos os Psicólogos e Psicólogas: jamais se intimidem. Se estou declarando uma emergência psiquiátrica, é porque, de fato, trata-se de uma emergência psiquiátrica. Não me submeterei a questionamentos ou à necessidade de explicações além de: "Sou Psicólogo Luan Gama CRP-15/3328 e estou diante de uma emergência psiquiátrica."
Durante todo o tempo, permaneci atento, especialmente em um momento em que M. voltou a ter falas delirantes e começou a chorar novamente.
Mais uma vez, me posicionei à sua frente, ajustei minha postura para ficar no mesmo nível dela e mantive a escuta ativa.
Não poderia ser indiferente à sua dor. Não poderia deixá-la se desestabilizar novamente. Não poderia prolongar seu sofrimento.
Acima de tudo, enquanto ela estivesse na minha sala, ela ainda era minha assistida. E até que M. seguisse com a equipe da SAMU, eu ainda era responsável por conduzir a situação.
Quando, finalmente, a equipe solicitou que ela os acompanhasse até a viatura e M. concordou, não deixei que a levassem sem concluir o atendimento com uma última intervenção:
“Sra. M., como responsável pelo seu caso até aqui, quero deixar muito claro que tudo o que estou fazendo é para garantir sua integridade física e mental. É para garantir que você seja tratada da forma adequada. É para o seu próprio bem. Agora, estou passando seu caso para a equipe da SAMU, e você pode seguir com eles.”
Ela chorou novamente, agradeceu e pediu desculpas.
Dessa vez, a equipe da SAMU finalmente pareceu entender quem estava conduzindo o caso. Me agradeceram e levaram M. até a viatura.
E, sem falsa modéstia, o sentimento de dever cumprido foi confirmado quando, antes de sair da instituição, o capitão da Polícia Militar, que passou mais de uma hora observando, da recepção, o tratamento oferecido à assistida e, ao mesmo tempo, as ligações e embates com os atendentes do SAMU, voltou para me cumprimentar e disse:
“Parabéns pelo trabalho.”
Sim, apenas aqueles que não passam o dia em uma sala com ar-condicionado, sentados em um gabinete, e que não desaparecem como fantasmas diante de situações críticas sabem que a postura que eu estava adotando ali era de extremo profissionalismo, mesmo correndo o risco de sofrer represálias do sistema.
Confesso que foram as únicas — e as palavras mais confortantes — que ouvi naquele dia.
CONCLUSÃO
A cena ficou na minha mente por muito tempo depois que a sala foi esvaziada.
Para todos, o caso havia terminado. Para mim, ainda restavam minhas obrigações técnicas e éticas.
Cuidadosamente, elaborei um relatório de ocorrência interna de doze páginas, detalhando não apenas os eventos do dia, mas também recomendações para evitar que situações como essa se repitam com tamanha morosidade, desgaste e burocracia.
Enviei o documento para todos da gestão da instituição e para outros dois defensores que de certa forma também eram responsáveis pelo caso da assistida.
"INTERDISCIPLINARIDADE TEM LIMITE" – Luiz Fux, Ministro do Supremo Tribunal Federal.
Em meio a todo o transtorno, tive a precaução de gravar em áudio e vídeo o ocorrido a partir do momento em que M. agiu com agressividade. Uma hora e cinquenta e seis minutos de registro, arquivados sob sigilo profissional, respeitando a privacidade da assistida e assegurando a veracidade dos relatos.
Após tantas reflexões, compreendi que jamais teria conseguido conduzir essa situação de forma tão cautelosa e minuciosa se não fosse pela graça do Espírito Santo de Deus.
REFLEXÕES FINAIS
Atendimentos como esse acontecem todos os dias – histórias de pessoas que não cabem nos protocolos burocráticos da Justiça, nem nos fluxos rígidos do sistema de saúde.
M. não queria um diagnóstico. Não queria uma internação. Não queria remédios.
Ela queria ser ouvida.
Naquela tarde, mais do que nunca, ficou claro que o maior desafio da Psicologia em uma instituição da justiça não é apenas lidar com a saúde mental dos assistidos.
É traduzir suas dores para que o sistema não as ignore.
E, talvez, garantir que, pelo menos uma vez, antes da sentença ou do laudo final, alguém diga:
“Eu acredito em você.”
João 14:26
“Mas aquele Consolador, o Espírito Santo, que o Pai enviará em meu nome, vos ensinará todas as coisas, e vos fará lembrar de tudo quanto vos tenho dito.”
29 de dezembro de 2024.
LUAN GAMA WANDERLEY LEITE
Psicólogo/Neuropsicólogo (CRP-15/3328)